A ANM tem conseguido regular a mineração?

25/04/2022
A resposta é sim, na opinião do diretor-geral do órgão, Victor Hugo Bicca, que permanece no cargo até dezembro de 2022.

 

Por Francisco Alves 

Após pouco mais de três anos de sua criação, a ANM (Agência Nacional de Mineração) contribuiu para melhorar a governança regulatória do setor mineral? A resposta é sim, na opinião do diretor-geral do órgão, Victor Hugo Bicca, que permanece no cargo até dezembro de 2022. Para ele, a mudança foi profunda, “porque passamos a ter dentro da Agência um órgão interno específico e especializado em regulação”, o que não se tinha no antigo DNPM. 

Ele também considera que a adoção de procedimentos como as consultas públicas e audiências públicas melhorou o processo de interlocução com a sociedade, que pode influenciar no processo de regulação. 

Nesta entrevista exclusiva a Brasil Mineral, ele também aborda o processo de oferta de áreas em disponibilidade, dos desafios de tratar da questão do garimpo, dos esforços que a ANM vem fazendo para a digitalização de seus procedimentos, da proliferação das Guias de Utilização (GU) e das deficiências de recursos humanos da Agência para fazer frente às tarefas de regulação e fiscalização. Confira.   

BRASIL MINERAL - Quais foram os principais avanços da ANM na regulação do setor?

VICTOR BICCA - A mudança foi profunda, porque passamos a ter dentro da Agência um órgão interno específico e especializado em regulação. Então incorporamos em nosso dia-a-dia a cultura de governança regulatória, o que não tínhamos no antigo DNPM. 

Com a mudança para Agência, com esses pressupostos de governança regulatória, há uma série de passos que têm sido observados no processo de regulação, como consultas públicas, audiências públicas, avaliação de impacto regulatório. Inclusive para efetivamente verificar se a mudança que está sendo proposta tem viabilidade ou chance de atingir o pretendido ou não. E em função da avaliação, tomar a decisão se vai ou não ser implementada a mudança. E uma vez tomada a decisão, ela tem que observar os prazos de consulta pública, de audiência e de buscar subsídio com o setor. Isso é uma mudança profunda em relação às nossas práticas. E depois de todos esses cuidados, a medida acaba chegando a um colegiado, que vai deliberar sobre a matéria. Deixa de ser uma decisão monocrática e passa a ser uma decisão de cinco diretores, que têm exatamente o mesmo nível de importância no colegiado. Isso nos dá segurança de que o processo de regulação é um instrumento muito mais interessante e permite interação permanente com o setor. E o processo está sendo cada vez mais aperfeiçoado. As audiências públicas estão sendo bastante concorridas, assim como as reuniões públicas. Nós temos, pelo menos uma vez por mês, uma reunião ordinária pública, com calendário já aprovado, onde todos têm condições de participar, exercer o exercício do contraditório. Então, os avanços são imensos. Não vamos conseguir aquilatar a significância disso, porque é tão profunda a mudança que começamos a nos perguntar por que demoramos tanto em chegar a esse nível. 

BRASIL MINERAL - Das normas editadas durante esse período, quais considera mais relevantes?

VICTOR BICCA - Nós construímos uma agenda regulatória, que é uma janela permanentemente aberta entre o que a instituição faz e a sociedade. Nós assumimos compromissos temporais com o setor de, nos dois primeiros anos, priorizar algumas matérias. Fizemos um levantamento preliminar e entendemos que precisamos regulamentar cerca de 120 pontos nas leis que criaram a Agência, no próprio Código de Mineração. E como elencamos as prioridades? Escutando o setor. 

A resolução do Regimento Interno talvez tenha sido a mais importante, porque sem ela a Agência não funcionava. A partir daí criou-se o debate para construção da agenda, com cinco eixos temáticos e alguns projetos essenciais. E acabamos chegando ao protocolo digital, algo tão comum hoje em dia, mas lembramos que até meados de 2019 nós trabalhávamos com protocolos mecânicos. A criação do protocolo eletrônico foi um passo para esse mundo virtual que estamos perseguindo agora com a digitalização dos processos. A Resolução 24, de 2019, também foi outro passo muito importante, porque criou uma nova regra para disponibilidade de áreas. Então já começamos a tratar daquele represamento que havia no sentido de parar os editais de disponibilidade no formato antigo. Com a resolução da disponibilidade, de oferta pública, nós instituímos um novo paradigma, uma nova visão, que se mostrou, ao longo desses anos, extremamente eficiente.

Também mencionamos as novas regras para Guia de Utilização, em que se fez alguns ajustes, em função da pandemia, começando a regular de acordo com as circunstâncias de mercado e com as vicissitudes que aparecem no dia a dia (a pandemia é um exemplo). 

Porém, a consolidação das normas de segurança de barragens talvez tenha sido o mais impactante de tudo. Porque, quis a história ou o destino, começamos a Agência com uma tragédia sem proporções na história da mineração brasileira, que foi o 25 de janeiro de 2019, com o rompimento da estrutura B1 da Vale. Então a prioridade passou a ser subsidiar a sociedade, atender os órgãos de controle, o Congresso Nacional, e ao mesmo tempo aperfeiçoar a legislação naquilo que era necessário. 

BRASIL MINERAL - Como o senhor avalia o processo de oferta de áreas? 

VICTOR BICCA - Há um passivo, que queremos eliminar, de cerca de 40 mil áreas. Nestes três anos prometemos realizar cinco editais. Foram perto de 16 mil áreas, das quais cerca de 50% ficaram livres. 30% a 35% tiveram um único interessado e as outras foram para leilão, o que nos permitiu auferir algo em torno de R$ 260 milhões. Agora estamos dando um passo à frente, que é uma parceria com o Serpro, para que ele seja o gestor disso. Porque nosso foco tem que ser a pesquisa, a produção, a própria arrecadação e isso deve se tornar uma atividade automatizada, gerenciada pelo Serpro. 

Em relação à disponibilidade, o setor anunciou claramente que está muito contente. Identificamos uma retomada de pesquisa, a área de sondagem está muito concorrida, então há um processo de retomada e temos certeza de que esse mecanismo surtiu os efeitos pretendidos. 

BRASIL MINERAL - Como avalia o processo de interlocução com a sociedade na regulação do setor e que obstáculos foram enfrentados nesse processo?

VICTOR BICCA - Ao meu juízo, essa inovação no modelo de gestão administrativa, decorrente da implantação da Agência, é fruto de uma cultura que se estabeleceu nas últimas décadas no setor de mineração. É como se fosse um espelho: a máquina do estado acaba espelhando a demanda da sociedade. Os órgãos de representação do setor também precisam buscar essa mudança. Mas não de forma isolada, enquanto empresa, e sim como entidade representativa do setor. Isso também precisa ser repensado. Porque estávamos acostumados a um modelo cartorial, extremamente rigoroso, com decisões monocráticas. E agora vivemos outros tempos. Precisamos de uma transparência mais efetiva, um processo de interlocução com a sociedade. Mas isso está sendo aprimorado: tivemos e temos reuniões bastante frequentes com entidades como o Ibram, o Comin/CNI, associações de agregados, de água mineral, alumínio... Então há esse processo de interação. A comunicação talvez seja uma das nossas maiores fragilidades. Temos dificuldade de nos comunicar com a sociedade, usamos uma linguagem muito hermética (costumo dizer que usamos o discurso para nós mesmos). 

BRASIL MINERAL - O processo de digitalização tem ajudado na eliminação do passivo, mas mesmo assim o mesmo ainda é elevado. Qual é o horizonte com que se trabalha para reduzir de forma mais expressiva esse passivo?

VICTOR BICCA - Nós estamos vivendo agora talvez o momento mais importante de nossa história recente. Praticamente todas as unidades estão mobilizadas para o processo de digitalização. É claro que isso não pode ser feito in loco, então tem muito deslocamento de processo, estamos centralizando em algumas unidades. A previsão era de 90 a 120 dias a partir do início. Definimos uma estratégia que nos possibilite, sempre que temos uma demanda, conseguir tirar o processo da rotina e tratar de forma separada. Mas precisamos, em curtíssimo prazo, até o final deste semestre, que pelo menos as principais unidades tenham tudo em meio digitalizado e já disponibilizado para ganharmos velocidade. 

Talvez um dos maiores desafios que temos seja o planejamento. Porque definitivamente não conseguimos dar conta do volume de coisas que temos que fazer. Temos que ter aprovação tácita e elencar prioridades. E num sistema randômico. Temos que ir a campo para fiscalizar de acordo com nossa capacidade instalada. Mas com eficiência. 

BRASIL MINERAL - O garimpo ganhou relevância, principalmente no período recente, na Amazônia. Como a ANM está tratando essa questão? 

VICTOR BICCA - O garimpo talvez seja um dos maiores problemas que temos na atualidade. Porque, ao meu juízo, existe um vazio legislativo. Temos uma legislação que foi formatada lá atrás e que trabalhou com uma lógica de garimpo que não existe mais. Aquele garimpeiro tradicional, da bateia, trabalhando isolado, tirando o seu diamante ou ouro, não existe mais. Hoje o garimpo está mecanizado. Então não se tem o garimpo tradicional. Agora se tem o conceito de mineração artesanal, pequena mineração, mas há um vazio que temos que preencher. E como reorganizar isso? Como enquadrar? Estamos criando um reordenamento interno e fazendo uma parceria com a OCB (Organização das Cooperativas do Brasil). Porque nós temos vários pontos, especialmente da Amazônia, onde há garimpos. E o que identificamos? Que muitos desses garimpos encontram-se em áreas que estão para ser disponibilizadas. Então o problema existe. A área está livre, mas temos todas as condicionantes para resolver o problema. Mas como vamos resolver? Não podemos resolver garimpeiro a garimpeiro. É preciso organizá-los em cooperativas. E estamos nos valendo da lei geral das cooperativas, especialmente porque as cooperativas minerais têm o viés que nos interessa, porque além de cuidar da questão de participação democrática, tem o viés econômico, porque eles também pretendem ter retorno para remunerar seus cooperados. No caso da cooperativa mineral, tem o viés ambiental. E a OCB está trabalhando os ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) da ONU. Então estamos enxergando nesse desenho do cooperativismo o modelo ideal para podermos não só regularizar e atender à questão do garimpo em várias áreas, mas também levar essa cultura organizacional que, ao nosso juízo, é imprescindível. E que precisa ter um mínimo de organização, para poder ter um responsável técnico, alguém que zele pela componente ambiental, que busque o licenciamento ambiental, que cumpra as condicionantes do licenciamento. Então, há uma possibilidade. E nós temos mapeado algo em torno de 600 áreas onde já podemos começar a rodar um piloto nos próximos meses. Teremos que fazer um edital para disponibilidade para as cooperativas. E ao invés de leilão, haverá indicadores socioeconômicos que terão de ser avaliados por uma comissão. Estamos nos valendo da aproximação com a OCB para encontrarmos uma solução compatível com o primeiro mundo. Uma convivência com o cooperativismo organizado e as empresas. Achar esse ponto de interseção, convergência e interesse comum que sabemos que existe. 

BRASIL MINERAL - Ainda com relação à questão do garimpo, o governo agora estabeleceu uma política específica para pequena mineração. Do ponto de vista da regulação, como a ANM trabalha isso? Há possibilidade de distinção normativa entre a pequena e a grande empresa de mineração?

VICTOR BICCA - Nós estamos reformatando nosso regimento interno e uma das coisas que sempre defendemos é que entendemos que há uma concentração exagerada de procedimentos na sede da Agência. Trabalhamos com um universo de mais de 80 substâncias minerais, que vai da argila para cerâmica vermelha, fabricação de tijolo, porto de areia, até minério de ferro para exportação. É uma variedade de substâncias extremamente vasta. E com suas especificidades que precisam ser enxergadas. Uma das bandeiras que levantamos quando da criação da Agência era que algumas atividades de outorga não necessariamente precisam vir a Brasília. Com o redesenho do regimento interno, queremos ver se a outorga de argila para cerâmica estrutural ou areia ou brita, que são atividades de impacto local, pode ser descentralizada para o gerente nos estados, evidentemente naqueles estados onde a estrutura permite. E com isso vamos desonerar, do ponto de vista administrativo, a sede em Brasília para que possamos focar os grandes projetos de relevância nacional. 

BRASIL MINERAL - Como resolver a carência financeira e de recursos humanos da Agência?

VICTOR BICCA - Este é um problema que se arrasta há décadas. Com o processo de implantação da Agência, conseguimos ganhar um novo olhar do governo. Há um reconhecimento da importância do setor mineral. Em função dessa importância, o governo também começou a enxergar as carências. No caso das barragens, por exemplo, em que houve uma tragédia logo depois de criada a Agência, isto levou o governo a perguntar como estávamos em termos de estrutura de pessoal. E não tínhamos equipe. Na época contávamos com seis fiscais e mais seis colaboradores. O governo colocou dinheiro para fazer vistoria, autorizou a contratação temporária, agora autorizou contratação permanente de 40 servidores para barragem. Pedimos ao Ministério da Economia e ao de Minas e Energia autorização para fazer concurso para 150 servidores. O ministro Bento Albuquerque tem consciência da importância do setor, deseja que o mesmo seja alavancado e a Agência é um instrumento indispensável para isso. Temos expectativa de que o concurso para 150 novos servidores seja aprovado este ano. Temos 38% da nossa força de trabalho com abono permanente e que podem ir para casa a qualquer momento. 

No que tange à questão orçamentária, temos uma previsão em lei que é invejável. Temos 7% da CFEM que por força de lei deveria ser receita da Agência. Estamos falando de algo em torno de R$ 700 milhões. Se tivéssemos assegurado o cumprimento pleno da previsão legal, não teríamos problemas orçamentários. 

BRASIL MINERAL - Durante a pandemia houve muito uso da Guia de Utilização. Como a Agência está tratando essa questão? 

VICTOR BICCA - A proliferação de GU foi fruto desse desajuste do passado, da dificuldade de fazer as coisas andarem, do fardo regulatório complicado, um sistema burocratizante levado ao extremo, falta de tecnologia. Tudo isso contribuía para que as coisas não fluíssem. Como não sai a portaria de lavra, busca-se a Guia. Agora a portaria de lavra foi aperfeiçoada um pouco, permitindo só uma guia antes da portaria e uma única renovação. Estamos propondo um ajuste na resolução da GU. E a GU só vai ser analisada se a portaria for analisada junto, para não dar a chance de descompassar as coisas. Não tem lógica o administrado preferir ter uma guia em detrimento de uma portaria de lavra, que é muito mais segura do ponto de vista jurídico. Então, ao invés de analisar a GU, temos que analisar a Portaria de Lavra. E talvez tenhamos que dar uma calibrada nas quantidades. Não deixar isso muito aberto, até porque fere, de forma direta, o princípio da GU prevista no Código, que é para pesquisa, para testar a rota tecnológica.