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Terras Indígenas: tudo para dar errado

14/04/2022
Coluna por Milton Rego

 

A tragédia da América é que entrou em todas as guerras com um consenso a favor delas, mas dentro de um período definido, a legitimidade da guerra tornou-se uma grande questão doméstica, com algumas pessoas argumentando que a retirada era o único objetivo legítimo.

Henry Kissinger

Certas escolhas se mostram críticas antes mesmo de prevalecerem. A questão da mineração em terras indígenas é uma delas. O Projeto de Lei (PL) 191/20, que trata do assunto e entrou em regime de urgência para votação na Câmara Federal, regulariza a lavra e a exploração de hidrocarbonetos nas reservas, prevendo também o aproveitamento de seus recursos hídricos.

A exploração de riquezas naturais em território indígena acontece em países desenvolvidos, como o Canadá e a Austrália, onde a legislação que baliza a atividade está anos luz à frente do que se propõe por aqui.

Noves fora, o PL 191/20 foi desenhado a fim de dar contorno legal a uma situação que muitas vezes acontece ao arrepio da lei e que ganhou tração nos últimos anos: o garimpo ilegal na Amazônia. 

A presença do garimpeiro em terras indígenas não é de hoje. Eles estão ali porque entraram escondido, à força ou, em alguns casos, fazendo acordos com caciques, numa dinâmica muito parecida com a dos madeireiros ilegais. Mas, apesar desses acertos com alguns grupos (poucos), a maioria dos indígenas se coloca contra a invasão de suas terras.

A questão é que, diferentemente da Austrália e do Canadá, onde a mineração acontece em desertos ou terras geladas, respectivamente, estamos falando da Amazônia, foco da atenção do mundo. E não sem razão. 

Abrangendo oito países da América do Sul e a Guiana Francesa, a Amazônia abarca mais de 60% das florestas tropicais do mundo, 20% da água doce do planeta e cerca de 10% da nossa biodiversidade. Isso significa que qualquer mudança nesse bioma tem impactos globais. 

Não se trata tanto de sequestro de carbono, mas do estoque dele. E, além de estocar carbono, as florestas regulam o clima. Elas contribuem para a chuva por meio da transpiração, que é o processo de movimento da água através de uma planta e sua liberação no ar pelas folhas, caules e flores. As plantas liberam água como subproduto da fotossíntese, o que aumenta a umidade do ar. Como uma floresta é composta por um gigantesco número de árvores, o volume de água liberado pela transpiração contribuiu para a formação de nuvens de chuva. Florestas tropicais muito grandes, como a Amazônia, podem conduzir chuvas por áreas extensas. São os chamados rios aéreos.

As questões que envolvem o clima são complexas, mas, a rigor, há uma certeza: o tema se tornou transnacional porque é vital para o planeta.

E, além do clima, há a biodiversidade. Não existe outra região do mundo com tamanha coleção de seres. Cerca de 15% da biodiversidade do planeta estão ali. Vivem na floresta 60 mil espécies de plantas, mamíferos, répteis, invertebrados, anfíbios, peixes e pássaros.

Portanto, por mais que alguns digam que a Amazônia é “brasileira”, a reação ao que acontece à floresta é mundial. Um recente relatório da Forest Declaration Organization, um portal sobre clima e florestas, diz que o cumprimento do Acordo de Paris não será possível sem reconhecer e apoiar o papel crucial das terras protegidas dos povos indígenas e das comunidades locais (IPLCs). Um artigo intitulado Sink or Swim (Afundar ou Nadar), diz que, na Amazônia, apenas a gestão da área pelos índios (com o apoio do governo) garantiria as contribuições determinadas nacionalmente (NDCs) para cumprir as metas do Acordo de Paris.

Falar sobre clima e biodiversidade é falar sobre Amazônia. E falar sobre Amazônia é falar sobre populações indígenas. E, vamos combinar: na discussão sobre a Amazônia e terras indígenas, a visão do mundo e, em especial da Europa, o Brasil está mais para bandido do que para mocinho. Aos fatos, então:

O que já sabemos

De acordo com o Map Biomas, (o mapa que ilustra este artigo), de 2010 a 2020, a área ocupada pelo garimpo dentro das terras indígenas cresceu 495%. No ano passado, metade da área nacional de garimpo estava em unidades de conservação e em terras indígenas. Em 2021, segundo o Imazon, o Brasil alcançou o máximo histórico do desmatamento da Amazônia: mais de 10 mil km². A relação entre garimpo ilegal e ameaça ao meio ambiente é intrinseca.

Na internet existem centenas de vídeos, podcasts e papers criticando o desmatamento e, em especial, os garimpos em terras indígenas. Dois exemplos: um brasileiro (https://www.youtube.com/watch?v=cF-dN2uIpN8 ); e um europeu (https://bit.ly/38Bpuka

A capacidade de recuperação da floresta, ou seja, a sua “resiliência” está diminuindo, segundo o Instituto Postdam para Pesquisa de Impacto Climático da Alemanha. “A resiliência reduzida – a capacidade de se recuperar de perturbações como secas ou incêndios – pode significar um risco aumentado de morte da floresta amazônica”, alertam os cientistas do Postdam. A conclusão veio depois da análise de 30 anos de dados de satélite, que mostraram a perda de regeneração principalmente nas áreas mais secas. 

A Amazônia está se aproximando de uma transição abrupta: de uma floresta úmida para um cenário mais semelhante ao de uma savana. Se o bioma caminhar nessa direção, haverá riscos para a biodiversidade, alteração no armazenamento de carbono e mudanças climáticas em escala global.

Dito isso, é impossível que uma discussão sobre a Amazônia fique restrita ao Brasil. 

Não quer dizer que não seja necessário pensar também sobre a qualidade de vida dos povos que habitam a floresta e na possibilidade de melhoria da sua vida. Isso significa lhes dar opções econômicas. Indira Ghandi afirmava: “Como poderemos dizer aos que vivem em vilas ou favelas (e eu adicionaria – nas margens dos rios) para preservar os oceanos, os rios e o ar puro, se a vida deles está contaminada?” 

Mas a resposta certamente não é o garimpo em terras indígenas, como propõe o PL 191/ 20. E essa percepção é generalizada.

O insuspeito Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), sentindo o cheiro de queimado, elencou os motivos pelos quais é contra o PL: o projeto não incorpora a escuta plena e os direitos dos povos originários; não contempla devidamente o fato de que garimpo ilegal precisa ser reprimido; e, principalmente, o setor da mineração responsável quer a floresta de pé.

E nem poderia ser diferente. As empresas reunidas no Ibram só têm a perder com a deterioração da floresta, mesmo fazendo tudo certo e adotando os mais avançados padrões de exploração sustentável. O risco, com a piora dos índices de preservação ambiental, é serem colocados pela opinião pública no mesmo saco dos predadores da floresta. E depois que isso acontece, é difícil – pra não dizer impossível – provar que focinho de porco não é tomada. 

Portanto, vale a pena flexibilizar a mineração em terras indígenas? A resposta é um sonoro não!